Diferentemente do que disse Lula, Funai foi enfraquecida no mandato de Dilma Rousseff

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu uma entrevista à Band News Difusora do Amazonas na última quinta-feira (23), na qual critica a política antiambiental e anti-indígena do governo Jair Bolsonaro, mas diz que “faria de novo” a usina de Belo Monte, no Xingu, empreendimento cujos impactos sociais e ambientais permanecem na Amazônia.

Na entrevista, Lula fala de desmatamento, citando as conquistas do próprio governo. Mas escorrega ao falar de terras indígenas, do papel da Funai, enfraquecida a partir do governo Dilma Rousseff, e da hidrelétrica no Xingu. Verificamos algumas das declarações do ex-presidente:


Vamos voltar a fazer o que a gente já vinha fazendo. Nós tínhamos diminuído o desmatamento na Amazônia em 80%.

VERDADEIRO

O desmatamento na Amazônia caiu 83,5% de 2004 a 2012, período que abrange os dois mandatos de Lula e metade do primeiro mandato de Dilma Rousseff. A taxa de desmatamento medida pelo Inpe caiu de 27.772 mil km2 em 2004 para 4.571 km2 em 2012. Dilma deixou o governo com a taxa em 7.893 km2, em 2016. Sob Bolsonaro, foi atingida a maior marca em 15 anos: 13.038 km2 em 2021.

Estávamos fazendo a maior (de)marcação de terras indígenas da história desse país.

FALSO 

Dados compilados pelo Instituto Socioambiental mostram que o maior número de homologações de terras indígenas ocorreu nos governos de Fernando Henrique Cardoso (145) e Fernando Collor (112). Lula é o terceiro da lista, com 87 homologações em seus dois mandatos, seguido por José Sarney (67) e Dilma Rousseff (21). A soma das homologações dos governos do PT (108) não ultrapassa as marcas de FHC e Collor.

Análise por extensão de terras indígenas homologadas mostra o mesmo padrão: 41,2 milhões de hectares nos governos FHC; ​26,4 milhões no governo Collor; 18,7 milhões nos governos Lula; ​14,3 milhões no governo Sarney; 5,4 milhões no governo Itamar Franco; e 3,2 milhões nos governos Dilma. A soma dos governos petistas (22 milhões de hectares) também é inferior à marca dos governos FHC e Collor.

“A Amazônia é um patrimônio da humanidade que pertence ao Brasil. Portanto, o Brasil não só tem soberania sobre o território da Amazônia, como nós temos interesse em fazer com que quem queira participar da atividade de pesquisa para saber o que nós temos na Amazônia de verdade, nós vamos chamar. É por isso que eu fiz o acordo com a Alemanha e Noruega (Fundo Amazônia), que o Bolsonaro recusou.”

VERDADEIRO

O Fundo Amazônia foi criado por decreto presidencial em 2008, no governo Lula, para o Brasil captar dinheiro como contrapartida à redução do desmatamento na Amazônia, e os principais doadores foram Noruega e Alemanha. Desde então, foram destinados R$ 1,8 bilhão para apoiar 102 projetos. Em abril de 2019, o fundo foi paralisado com R$ 3 bilhões em caixa por um decreto de Bolsonaro que alterou sua estrutura – desde então, as doações internacionais foram interrompidas.

É lamentável, é muito triste a morte do jornalista inglês e do indigenista brasileiro, e é grave porque nós vimos um processo ascendente de fortalecimento da Funai (…) Lamentavelmente, depois do golpe que deram na presidenta Dilma, toda a estrutura de acompanhamento das reservas indígenas, todo o sistema de fiscalização que tinha sido montado, foi sendo destruído”.

NÃO É BEM ASSIM

Apesar de o governo Bolsonaro ser o mais anti-indígena desde a redemocratização, tendo sabotado e desmontado a Funai, como mostrou dossiê do Inesc e da INA neste mês, o enfraquecimento do órgão indigenista e da proteção às terras indígenas data de muito antes do impeachment de Dilma Rousseff. O orçamento do órgão começou a cair a partir de 2013, ainda no primeiro mandato da presidente, segundo análise do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

 

Também no governo Dilma houve tentativa de mudar o rito de demarcação de terras indígenas. Em 2013, a então ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann (PT-PR), chegou a solicitar ao Ministério da Justiça, ao qual a Funai é vinculada, a suspensão de todas as demarcações em regiões “de conflito”, como o Paraná. Na época, o governo propôs que o Ministério da Agricultura e a Embrapa fossem consultados em qualquer processo de demarcação. A proposta não caminhou – o rito de demarcação já prevê consultas a outros interessados e contraditório. No entanto, um ano antes, em 2012, o advogado-geral-da União de Dilma, Luís Adams, baixou uma portaria estabelecendo o chamado “marco temporal” para as terras indígenas. Por ela, só seriam reconhecidas terras indígenas que estivessem ocupadas desde 1988, data de promulgação da Constituição. A portaria de Adams foi o embrião de um parecer da AGU no governo Temer, em 2017, efetivamente determinando mudança no rito de demarcações para incluir o marco temporal. O parecer teve seus efeitos suspensos em 2019, quando o STF começou a julgar a questão do marco.

O governo Dilma também editou portarias interministeriais para dificultar a ação da Funai em licenciamentos de usinas hidrelétricas e outras obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

“Faria [a usina hidrelétrica de Belo Monte] de novo (…) Fizemos um ajuste de conduta com todos os movimentos, MAB, índios, ribeirinhos, Ministério Público. Em Brasília, me reuni com bispos, com pastores, com Ministério Público, com índios, pescadores, com os companheiros do MAB – que é o movimento mais importante contra as barragens… Foi feito um acordo com todos eles, e aí decidimos fazer Belo Monte.”

NÃO É BEM ASSIM

Apesar de ter realizado reuniões e audiências com movimentos sociais e representantes das comunidades impactadas por Belo Monte, todo o processo de licenciamento e construção da hidrelétrica foi marcado por violações de direitos humanos, objeções e protestos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos chegou a pedir a suspensão do licenciamento da usina em 2011. Em retaliação, a presidente Dilma Rousseff determinou a suspensão dos repasses à entidade multilateral. Não houve pacificação quanto ao tema, diferentemente do que afirmou Lula.

Em abril de 2010, quando foi realizado o leilão para a seleção do consórcio construtor da usina, ocorreram manifestações em dez Estados do país. Semanas antes, quando o primeiro leilão para concessão havia sido cancelado por decisão judicial, nota pública do Movimento dos Atingidos por Barragens reiterava: “Manteremos nossa pauta de lutas pelo cancelamento definitivo da Licença Prévia e do leilão de Belo Monte”. No começo de abril daquele ano, movimentos sociais e organizações de direitos humanos denunciaram à ONU violações envolvendo a construção de Belo Monte. Na ocasião, Antônia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, relatou sofrer ameaças de morte e retaliações por conta de sua atuação contra o empreendimento. “Usina é crime contra a humanidade”, disse ela em abril de 2010.

Em agosto do mesmo ano, organizações realizaram em Altamira (PA) o acampamento Terra Livre Regional, do qual participaram, segundo o MAB, mais de 400 indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores, que reafirmaram o posicionamento contrário à construção de Belo Monte. Em 2011, o canteiro de obras foi ocupado por cerca de 400 indígenas, pescadores, ribeirinhos e agricultores “contrários à construção da obra devido aos graves impactos ambientais e violações de direitos humanos que marcam o processo de licenciamento do empreendimento”. “Diante da intransigência do governo em dialogar e da insistência em nos desrespeitar, ocupamos o canteiro de obras de Belo Monte e trancamos seu acesso pela rodovia Transamazônica”, afirmaram, em carta à Presidência, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS). Em 2013 houve outra ocupação do principal canteiro de obras por cerca de 200 manifestantes. Em seguida, Dilma enviou a Força Nacional para reprimir protestos contra a usina.