Encontro em 28/9 revogou resolução que protegia restingas e aprovou norma que permite queima de lixo tóxico em fornos de cimento

No dia 1º de outubro, o Ministério do Meio Ambiente tentou dar uma de agência de “fact-checking” e publicou em seus perfis nas redes sociais uma imagem com supostos “fatos” sobre a reunião do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de 28 de setembro. O encontro produziu revogação de resolução que protegia restingas e aprovou uma outra resolução que permite a queima de lixo tóxico em fornos de cimento. A Justiça chegou a anular os efeitos da reunião, mas o governo recorreu e o Tribunal Regional Federal do DF derrubou a anulação.

No formato pergunta e resposta, o “card” (como é chamado esse tipo de imagem) do MMA elenca a versão do ministério para o encontro do Conama e suas decisões.

Fakebook.eco verificou o que há de verdadeiro na postagem com advogados ambientais e um ex-conselheiro do Conama e encontrou uma série de “fatos alternativos”, o eufemismo cunhado em 2017 pelos assessores de Donald Trump para designar distorções da realidade. Leia abaixo.


As restingas e manguezais ficaram sem proteção?

A PROTEÇÃO FOI REDUZIDA

O Código Florestal traz a definição de restinga, mas não estabelece parâmetro mínimo para sua proteção, como fazia a resolução 303 do Conama, de 2002. “A Resolução 303 é a única que trata especificamente da questão da restinga na sua especificidade, inclusive metragem mínima de proteção, e foi objeto de ganho de causa em ação do Ministério Público de São Paulo, que obrigou a Cetesb a cumprir a resolução. Então, não há legislação superveniente com relação à restinga que permita uma substituição desta norma”, afirma Carlos Bocuhy, ex-conselheiro do Conama que preside o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam). No dia 4 de outubro, 65 cientistas e 24 redes de pesquisa publicaram um manifesto pedindo a anulação da revogação. Entre eles estão alguns dos maiores especialistas do país em zonas costeiras.

A restinga é um depósito arenoso paralelo à linha da costa, produzido por processos de sedimentação, com cobertura vegetal em mosaico, encontrada em praias, cordões arenosos, dunas e depressões.

Segundo a Resolução nº 303/2002 do Conama, deve ser preservada uma faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de maré mais alta, e em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues (Art. 3º, IX).

Já houve questionamentos jurídicos sobre se uma norma do Conama poderia ser mais restritiva do que o código florestal, e a Justiça tem mantido o entendimento de que sim. “É absolutamente errôneo o entendimento sustentado por alguns de que as Resoluções 302 e 303 do Conama teriam sido derrogadas pela legislação ambiental superveniente, como, por exemplo, a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) e o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012)” apontam os juristas Ingo Wolfgang Sarlet e ​Tiago Fensterseifer. “Tanto a Primeira quanto a Segunda Turma do STJ já se manifestaram sobre a legalidade da Resolução 303/2002 do Conama, entendendo que o órgão não exorbitou de sua competência ao fixar a faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamar máxima como restritiva ao direito de propriedade, tratando-se, conforme assinalado pelo ministro Antonio Herman Benjamin, de texto normativo recepcionado pelo regime do Código Florestal de 2012.”

No caso do mangue, um dos ecossistemas mais afetados pela urbanização, por empreendimentos turísticos/portuários e pela criação de camarões (carcinicultura), ambas as normas estabelecem que deva ser preservado em toda a sua extensão, mas a Resolução 303 é considerada mais protetiva por não diferenciar as regras para os apicuns, uma das feições do ecossistema, como faz o código florestal de 2012.

A revogação da resolução sobre mangues e restingas foi tomada de última hora?

NÃO, MAS…

É verdade que existem desde 2015 discussões no Conama sobre a revogação da norma, por supostamente ter se tornado obsoleta com Código Florestal de 2012. Em 2017 o debate chegou a entrar na pauta do conselho, mas o próprio Ministério do Meio Ambiente concordou em retirá-lo, por reconhecer que as resoluções 302 e 303 traziam elementos de proteção ambiental que não estavam cobertos por nenhuma outra norma. “Foi colocado na época que deveria haver um debate público, técnico, científico para manutenção das salvaguardas contidas na 303 e na 302”, lembra Carlos Bocuhy, do Proam. Em vez de revogar, portanto, a decisão do Conama e do MMA à época foi de que seria necessário atualizar e aperfeiçoar as duas resoluções.

Esse tipo de revogação é comum?

NÃO

Não apenas não é comum, como uma revogação de uma resolução na base do “parecer, caneta” – ou seja, com avaliação apenas jurídica e não de mérito – viola o regimento interno do Conama, aprovado, vejam vocês, pelo próprio Ricardo Salles em 2019. Segundo a portaria que define o regimento, qualquer revisão de resolução do conselho precisa tramitar como se fosse uma nova resolução.

Normativas com legislação superveniente já foram revogadas, mas não era comum até o governo Bolsonaro a revogação sistemática de normas de proteção ambiental por órgãos de meio ambiente. O Conama pode revogar resoluções, mas esse debate tem de ser amplo e fundamentado tecnicamente. Na revogação da Resolução 284, que tratava do licenciamento da irrigação, por exemplo, o argumento do parecer jurídico não foi de revogação tácita por legislação mais recente. Argumentou-se que a resolução era desnecessária e feria o princípio da “mínima intervenção”. Sem oitiva de câmara técnica que poderia verificar se a resolução era relevante ou não, decidiu-se pela revogação. Revogações com avaliação apenas jurídica, que deveriam envolver análise de mérito, não aconteciam no Conama.

Foi liberada a queima de lixo tóxico sem controle?

FOI ABERTA A POSSIBILIDADE DE ISSO OCORRER

A resolução aprovada viabiliza a queima nos fornos de cimento de resíduos de agrotóxicos e outros resíduos com poluentes orgânicos persistentes (POPs) acima dos limites máximos, por decisão do órgão ambiental, “se houver melhoria ambiental”. Ocorre que o conceito de melhoria ambiental presente no texto inclui a redução da necessidade de disposição final de resíduos, o que sempre ocorre na queima. A resolução anterior (264/1999), revogada, tinha cautela e vedava expressamente a queima de agrotóxicos em fornos de produção de clínquer (de produção de cimento).

“O Ministério do Meio Ambiente parece assumir a incineração associada à geração de energia como a destinação final mais adequada para os resíduos sólidos. Com a prioridade para a incineração, serão desestimulados os esforços em prol da não geração, que é a opção número um, que norteia a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Com a opção pela queima, será afetada negativamente inclusive a aplicação da logística reversa das embalagens de agrotóxicos, implantada no país há 20 anos. Optando-se pelo caminho da incineração, quanto mais lixo, melhor. Esse quadro preocupa mais ainda quando estão em foco resíduos perigosos, que necessitam de um gerenciamento muito controlado”, destaca Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.

A incineração desses resíduos traz algum benefício para o meio ambiente?

NÃO NECESSARIAMENTE – E TRAZ RISCOS ADICIONAIS

A resolução sobre incineração de resíduos aprovada pelo Conama atropelou um parecer da própria Consultoria Jurídica do MMA, que foi contra a manutenção da flexibilização dos padrões de emissão pelos Estados por entender que ela traz o risco de emissão de poluentes orgânicos persistentes controlados pela Convenção de Estocolmo, da qual o Brasil é signatário:

“A possibilidade de que órgãos ambientais estaduais possam flexibilizar os parâmetros máximos, inclusive, gerando um impacto econômico que poderá ser mais favorável ao setor em determinado estado não se amolda ao princípio da prevenção, mormente, em virtude do conhecimento científico disponível sobre as potencialidades de dano ambiental decorrentes dos poluentes envolvidos, bem como, contraria a lógica de aumento do controle das emissões de poluentes orgânicos persistentes estabelecidos em norma internacional da qual o país é signatário.”

Tanto o parecer quanto especialistas consultados por Fakebook.eco, como Carlos Bocuhy, do Proam, alertam também para o fato de a resolução não considerar as emissões de gases de efeito estufa nos fornos.

O art. 9º da Lei nº 12.305/2010 estabelece a seguinte ordem de prioridade para a Política Nacional de Resíduos Sólidos: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. No parágrafo único, admite a utilização de tecnologias como a incineração visando à recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos, mas não elimina a ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização e reciclagem.

Sobre a queima de produtos perigosos em fornos de cimento, Bocuhy alerta que “é um risco e uma temeridade, porque trata-se de equipamento que não é apropriado para esse tipo de incineração, com todas as salvaguardas que isso exige”. Para o ex-conselheiro, a incineração “é um recurso extremo para eliminação de determinados elementos, e o ideal é que haja tratamento químico ou isolamento dos materiais perigosos, porque a queima sempre lança na atmosfera elementos que não são aceitáveis”. “Vai da emissão de carbono até o risco de dioxinas, furanos e outros elementos. Pode haver benefícios ambientais em algumas situações, mas o benefício consiste na destinação adequada, e não na incineração em si”.

A decisão do Conama foi tomada democraticamente?

NÃO

O próprio regimento interno do Conama exige que revisões de normas tenham tramitação de resolução no conselho. Não foi o que aconteceu. Bocuhy, ex-conselheiro do colegiado, lista outros pontos:

“O primeiro ponto é que a discussão foi pautada em regime de urgência, o que não permite o pedido de vistas. Então, o conselheiro que não estiver seguro, que ainda não formou juízo de valor, vai ter de submeter a sua vontade à maioria do conselho. O pedido de vistas é votado pelo plenário. E como o governo tem 43% e o setor produtivo 8%, numa situação em que haja acordo entre o governo e o setor produtivo só isso já impede que a democracia se faça, na medida em que qualquer conselheiro tem o direito de ter a sua dúvida dirimida para exercer o seu voto. Isso já tira a característica democrática do processo. Com a alteração da composição do conselho feita no ano passado, houve diminuição da participação da sociedade civil. Hoje há apenas 4 vagas para entidades da sociedade civil, das 23 que havia. A proporção em relação ao total de representações caiu. Além disso, duas das quatro entidades da sociedade já pediram desligamento em função da insuficiência democrática. Essa alteração no Conama foi objeto de ação do Ministério Público, que está tramitando com a ministra do STF Rosa Weber. É entendimento do MP e de várias entidades que houve um retrocesso democrático no Conama.”

O Conama perdeu representatividade?

SIM

Apesar de o governo afirmar que manteve a proporcionalidade entre os participantes, o quadro abaixo mostra que a informação é falsa. Dos 96 titulares que o governo menciona, apenas 93 tinham direito a voto, por isso o quadro informa o total de 93 para a representação anterior à reforma de maio de 2019.

A justificativa de eficiência para reduzir o tamanho do colegiado, invocada pelo ministro do Meio Ambiente, é falaciosa. Afinal, as discussões profundas no Conama se faziam em câmaras técnicas, grupos menores, e não no pleno do colegiado. O Congresso Nacional, com 513 deputados e 81 senadores, também discute os assuntos em grupos menores, as comissões, e delibera no plenário. É como funcionam as estruturas democráticas que necessitam de representatividade.