O embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, desinformou e distorceu fatos em carta enviada no último dia 19 ao presidente da Comissão de Recursos Naturais da Câmara dos EUA, o deputado Raúl Grijalva (Democrata).
No dia 30 de junho, o parlamentar publicou em seu perfil no Twitter uma manifestação de solidariedade com os indígenas brasileiros, vitimados pelas “máfias do ouro”. A postagem continha o link de uma reportagem da BBC narrando os ataques a tiros de garimpeiros a aldeias yanomamis e afirmando que as invasões se intensificaram no mandato de Jair Bolsonaro.
Em resposta, o embaixador mandou uma carta de duas páginas na qual afirma que as “instituições brasileiras” vêm sendo “bem-sucedidas em evitar atividades ilegais” – o que contrasta flagrantemente com o aumento de 135% nas invasões de terras indígenas no país em 2019 e com o aumento no ritmo de desmatamento nesses territórios nos últimos dois anos.
Além disso, o embaixador mentiu ao afirmar que o Supremo Tribunal Federal “autorizou” o Executivo a agir na defesa dos territórios yanomami e munduruku, invadidos por garimpeiros. Na verdade, o STF obrigou o governo a atuar, e o ministro Luís Barroso também criticou as atitudes “protelatórias” da administração Bolsonaro em relação à proteção dos indígenas contra a Covid.
Leia a seguir a verificação de alguns pontos da carta. O Itamaraty foi procurado e seus comentários serão acrescentados a esta postagem caso o ministério se manifeste.
“O governo brasileiro é constitucionalmente obrigado a demarcar e proteger terras indígenas. Ao fazê-lo, as instituições brasileiras, em cumprimento tanto à legislação interna quanto a compromissos internacionais, têm sido bem-sucedidas em evitar atividades ilegais.”
FALSO
Sob Bolsonaro, o desmatamento em Terras Indígenas (TIs) teve o maior incremento em 11 anos. Segundo o Inpe, foram devastados 428 km2 em 2020, área 64% maior do que em 2018, último ano do governo Temer.
Já análise do MapBiomas mostra que o número de terras indígenas que tiveram algum desmatamento em 2020 (297) aumentou 31% em relação a 2019. É uma velocidade duas vezes maior do que o desmatamento médio no país, que aumentou 14% no mesmo período. Os desmatamentos em TIs representaram 7,3% do total de alertas em 2020, contra 5,9% em 2019.
Embora a Constituição de fato obrigue o governo a demarcar e proteger terras indígenas, a administração Bolsonaro descumpre deliberadamente esse papel – o presidente se elegeu dizendo que não demarcaria “um centímetro” de terras indígenas e que buscaria reverter demarcações já feitas, o que seus aliados no Congresso têm buscado fazer com o Projeto de Lei (PL) 490. Em mais de dois anos e meio de governo, Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente, desde a promulgação da Constituição, a não demarcar nenhuma terra indígena.
Em relação à proteção, a atual gestão foi denunciada na ONU no último dia 14 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em razão de uma série de medidas que atacam direitos indígenas, como o projeto do governo de liberar atividades econômicas em terras indígenas. Segundo o Cimi, os registros de invasões nessas áreas aumentaram 135% no primeiro ano do governo Bolsonaro. O presidente também é alvo de um inquérito no Tribunal Penal Internacional por incitação ao genocídio de indígenas.
“Outra resposta do governo a atividades ilegais em terras indígenas levou ao deslocamento das Forças Armadas para garantir a lei e a ordem nessas terras e em outras que são de propriedade ou estão sob supervisão federal. Essas operações começaram em 28 de junho, em 26 municípios, e ocorrerão até 31 de agosto.”
FALACIOSO
Reportagens apontam que militares boicotaram operações contra garimpos ilegais em terras indígenas em Roraima, recusaram-se a destruir equipamentos usados por criminosos em áreas protegidas no Pará e em Mato Grosso, cancelaram apoio à Polícia Federal em ação contra garimpos no Pará, abortaram operação do Ibama e deram carona a garimpeiros em avião da FAB do Pará até Brasília.
Em abril de 2020 a cúpula da fiscalização do Ibama foi exonerada após uma operação de combate a garimpos ilegais em terras indígenas no Pará que desagradou ao presidente.
Retomada no fim de junho após dois meses de hiato, a operação militar na Amazônia fracassou em 2020: mesmo com o “reforço” de mais de 3 mil militares na região, o desmatamento foi o maior em 12 anos e o total de multas aplicadas pelo Ibama por crimes contra a flora caiu pela metade na comparação com 2018, último ano do governo Temer.
“Além disso, em maio de 2021 o Supremo Tribunal Federal autorizou o Governo a adotar todas as medidas necessárias para proteger a vida, a saúde e a segurança das comunidades Yanomami e Munduruku em face da ameaça de invasores em terras indígenas.”
FALSO
Na verdade, em maio o ministro do STF Luís Roberto Barroso obrigou o governo a agir imediatamente contra o garimpo nas TIs Yanomami e Munduruku. Dez meses antes ele já havia determinado a adoção de medidas para proteger a população indígena do avanço da Covid-19.
Na decisão mais recente, Barroso criticou a atuação do governo, citando “atos protelatórios” para vacinação de povos indígenas em terras não homologadas e áreas urbanas sem acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Em julho de 2020, ao sancionar uma lei com medidas para conter a disseminação da Covid-19 nas aldeias, Bolsonaro vetou a previsão de entrega de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores aos indígenas. Justificando os vetos, o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), declarou que, “em relação à água potável, o indígena se abastece dos rios”. Muitos desses rios, porém, estão contaminados com mercúrio, em razão do garimpo ilegal.
“Subsequentemente, em 29 de junho de 2021, uma operação foi realizada pela Polícia Federal e pelo Ministério da Defesa em terras Yanomami no estado de Roraima para reduzir a violência causada por garimpeiros ilegais e aprender equipamentos usados nessas atividades clandestinas. Com apoio por ar, terra e via fluvial, as forças federais confiscaram e ou destruíram quatro balsas, onze geradores, vinte e duas bombas hidráulicas e dezoito acampamentos.”
NÃO É BEM ASSIM
O presidente da Hutukara Associação Yanomami, Davi Kopenawa, afirma que as operações mencionadas por Forster “resumiram-se a incursões pontuais e até o momento não compreenderam todas as regiões e comunidades afetadas”. “Uma vez encerradas (as operações), o garimpo volta a funcionar normalmente, de modo que a maioria dos núcleos garimpeiros ilegais no interior da terra indígena permanecem ativos. Os resultados divulgados até o momento, portanto, são pouco significativos diante da real proporção que a atividade garimpeira ilegal atingiu na Terra Indígena Yanomami”, diz Kopenawa em carta enviada ao deputado Raúl Grijalva.
Levantamento divulgado em maio apontou a presença de cerca de 20 mil garimpeiros na TI Yanomami. Em junho de 2021 a área impactada pelo garimpo na TI atingiu 2.702 hectares, um aumento de 21% em relação a dezembro de 2020, segundo a Hutukara. A explosão do garimpo na região coincide com o estímulo do governo Bolsonaro à exploração de terras indígenas, a defesa de projetos de lei que retiram a proteção dessas áreas e o desmonte da capacidade de atuação do Ibama e da Funai nos últimos dois anos e meio.
“Finalmente, eu gostaria de atualizá-lo com alguns números sobre os esforços do governo brasileiro para vacinar os povos indígenas. Até agora, 649.687 doses de vacina foram administradas, apesar de dificuldades logísticas excepcionais. Oitenta e quatro por cento (343.310) dos adultos indígenas receberam pelo menos a primeira dose, enquanto 75% (306.377) já estão completamente vacinados.”
VERDADEIRO, MAS
O Ministério da Saúde restringiu a vacinação prioritária a 408.232 indígenas adultos que vivem em terras indígenas. Até esta quinta-feira (22/7) 344.937 tinham sido vacinados com a primeira dose (84%) e 308.197 com a segunda (75%). No entanto, se for considerada toda a população indígena do país (896,9 mil pessoas, segundo o último Censo do IBGE), o número de vacinados com a primeira dose representa 38% do total, e aqueles completamente vacinados, 34%.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) estabeleceu como meta vacinar ao menos 90% da população alvo (indígenas com 18 anos ou mais atendidos pelo SUS que vivem em terras indígenas). Indígenas que vivem em cidades não entraram no grupo prioritário.
Seis meses após o início da campanha de vacinação nos territórios indígenas, os nove estados da Amazônia Legal estão com coberturas inferiores à meta de 90%: AM 68%; MT 69%; RR 64%; PA 61%, AC 47%; AP 70%; TO 73%; MA 75%; RO 86%.
A população indígena tem como característica demográfica ser jovem: cerca de metade tem menos de 18 anos, aponta o Instituto Socioambiental (ISA). Ou seja, mesmo uma campanha bem-sucedida deixaria metade da população nos territórios ainda suscetível à Covid-19.