Carta de diplomata acusa supostos "soberanistas alimentares" por tentar minar competitividade do agronegócio nacional

Em carta enviada nesta quarta-feira (26/8) ao jornal italiano Il Sole 24 Ore, o embaixador do Brasil em Roma, Helio Ramos, contesta reportagem sobre o aumento das queimadas na Amazônia em julho e afirma que “é errado vincular agricultura e desmatamento no Brasil”.

Helio Ramos é embaixador na Itália, em Malta e San Marino desde setembro de 2019. Na carta, ele diz que, ao ler a matéria, se sentiu “na obrigação de enviar informações sobre a realidade agroambiental brasileira, contribuindo para o debate”.

O Itamaraty foi procurado para se manifestar, mas não havia respondido até a publicação deste texto.

Verificamos as informações divulgadas pelo embaixador. Veja a seguir:


 

A floresta amazônica é a maior floresta equatorial do mundo. É uma criação dos brasileiros, que a preservam até hoje, fazendo-a melhor do que muitos outros países do Norte do mundo, onde as florestas naturais já não existem.

FALACIOSO

O Brasil passou muito tempo sem se preocupar em preservar a Amazônia. Em 1975, o desmatamento acumulado era de 27 mil quilômetros quadrados apenas, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em apenas 45 anos chegamos a 800 mil quilômetros quadrados, o equivalente às áreas somadas de Espanha e Itália. Foi apenas em 1988 que o Brasil criou uma política nacional de preservação da Amazônia e apenas neste século que conseguiu reduzir a velocidade do desmatamento. Esse esforço perdeu eficiência a partir de 2012, quando o desmatamento voltou a acelerar, e foi cancelado em 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro engavetou o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia. Desde 1990, a Europa ganhou 90 mil quilômetros quadrados de cobertura florestal, o equivalente a um Portugal, enquanto o Brasil perdeu, apenas na Amazônia, mais de 370 mil quilômetros quadrados, ou quatro Portugais. Três países europeus, a Suécia (69%), a Finlândia (73%) e a Eslovênia (62%), têm mais florestas que o Brasil (59%) como proporção do território.

Mais de 60% do Brasil é coberto por vegetação nativa, com atividades agrozootécnicas limitadas a cerca de 30% do território, sendo 8% para todas as atividades agrícolas do país e cerca de 22% para a pecuária.

VERDADEIRO

Cerca de 67% do território brasileiro é coberto com vegetação nativa, apesar de menos da metade dessa vegetação estar em áreas protegidas. A agropecuária de fato ocupa cerca de 30% do país.

O referido artigo apresenta uma visão distorcida da realidade, sem oferecer ao leitor outras perspectivas. Não menciona que, de acordo com a “Avaliação Global de Recursos Florestais”, a redução pela metade do desmatamento na América do Sul é atribuída ao quadro brasileiro, onde a perda florestal diminuiu de 3,95 milhões de hectares no período 2000-2010 para 1,5 milhão de hectares entre 2010-2020.

MEIA-VERDADE

Embora tenha havido uma queda significativa do desmatamento a partir de 2005, essa redução se interrompeu em 2012. Desde então, a tendência é de alta, exacerbada no governo Bolsonaro. A taxa de desmatamento em 2019 foi a mais alta desde 2008 e teve a maior elevação percentual neste século. De 2012 a 2019 houve aumento de 122% do desmatamento na Amazônia.

Monitoramento realizado pela Global Forest Watch mostra que o Brasil representou, sozinho, mais de um terço de toda a perda de florestas primárias tropicais úmidas no mundo em 2019, com mais florestas primárias perdidas do que qualquer outro país tropical.

Dados preliminares do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que o desmatamento na Amazônia em 2020 deverá ser ainda maior.

 

Fonte: Global Forest Watch

 

O Brasil também é líder em áreas de cultivo de florestas plantadas na região da América do Sul e possui a maior reserva florestal em crescimento, equivalente a 22% do total global.

VERDADE, MAS…

Segundo o levantamento Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura (Pevs), do IBGE, o Brasil tem quase 10 milhões de hectares de florestas plantadas, principalmente pinus e eucalipto, o que torna o país um dos maiores exportadores de celulose. No entanto, as áreas de silvicultura concentram-se nas regiões Sul e Sudeste, onde a vegetação nativa foi severamente desmatada, a exemplo da Mata Atlântica. Lembrando que florestas comerciais plantadas não são ecossistemas naturais, mas sim cultivos agrícolas.

Portanto, essa produção de florestas plantadas não tem relação com o desmatamento na Amazônia, que é objeto de preocupação internacional e tem gerado duras críticas e ameaças de represálias comerciais ao país, como o recente posicionamento do governo alemão sobre eventual acordo com o Mercosul.

Mais especificamente, na agricultura, de 1990 a 2019 o Brasil reduziu em 15,5% a área de pastagens dedicadas à pecuária, enquanto a produtividade cresceu 169%, graças a um investimento pioneiro em pesquisa.

FALSO

Os dados de pastagem usados pelo embaixador possivelmente são originados de uma consultoria agropecuária, a Athena Agro, e baseiam-se no Censo Agropecuário do IBGE, que por sua vez é baseado em autodeclarações e cobre apenas 41% do território nacional. Dados parecidos constam de carta enviada em junho pelo governo brasileiro a parlamentares europeus – o documento de junho mencionava, porém, que a produção de gado cresceu 139% de 1990 a 2018, enquanto a área de pastagens caiu 15% no mesmo período.

No entanto, dados de mapeamento via satélite do projeto MapBiomas, que cobre 100% do Brasil, tem metodologia aberta e é validado por um comitê científico independente, mostram que a área de pastagens cresceu 24% nesse período, de 147 milhões de hectares para 183 milhões de hectares. O aumento da área de pastagens do Brasil também se verifica ao consultar dados do IBGE de mapeamento da cobertura e uso da terra de todo o país lançados em 2020 – um aumento de 12% a 27% apenas entre 2000 e 2018. A produtividade da pecuária (ou seja, a quantidade de carne produzida por hectare) cresceu desde 1990, mas em cerca de 92%.

Com esse aumento de produtividade, que resultou no efeito “economia de terra”, os produtores brasileiros evitaram que cerca de 270 milhões de hectares fossem desmatados. Segundo a Athenagro Consultoria, estima-se que até 2027 a produtividade cresça 47%, liberando cerca de 10 milhões de hectares de área.

MEIA-VERDADE

O aumento da produtividade geral dos produtos agrícolas brasileiros pode ser um fator positivo, mas isso não afasta o fato de o Brasil ter desmatado mais de 10 mil km2 de floresta amazônica em 2019, um aumento de 34,4% em relação ao ano anterior, com projeções de área desmatada ainda maior em 2020. Segundo o MapBiomas, desde 1985 os biomas brasileiros perderam 89 milhões de hectares de cobertura nativa, enquanto a agricultura, incluindo a pecuária, ganhou 86 milhões de hectares. A Amazônia encolheu 20%, enquanto o Cerrado, onde está a maior parte da agricultura, teve 55% de sua área transformada em terras agrícolas nos últimos 50 anos.

Portanto, vincular a agricultura no Brasil ao desmatamento não demonstra conhecimento da realidade brasileira e prejudica, por meio da concorrência desleal, os produtores brasileiros que estão comprometidos com a agricultura sustentável e muitas famílias cuja renda depende da agricultura.

FALSO

De acordo com o projeto TerraClass, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Inpe, 71% das áreas desmatadas na Amazônia em 2014, último ano com dados disponíveis, estavam ocupadas por agricultura ou pastagens. Segundo o TerraClass, o pasto é a forma dominante de uso da terra na Amazônia, ocupando 65% da área desmatada.

A maior parte do desmatamento ocorre em áreas privadas, como demonstrado em análises realizadas pelo próprio Ministério do Meio Ambiente para elaboração do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (4ª Fase). Embora o valor possa variar de um ano para outro, mais de 30% do desmatamento ocorre em áreas privadas e pouco menos de 30% ocorre em assentamentos, que também são áreas privadas. Portanto, chega-se a mais da metade, cerca de 60%, nessas áreas.

De acordo com a FAO, a pecuária garante o sustento de quase 1,3 bilhão de pessoas, promovendo também a sustentabilidade social (muitas vezes e propositalmente esquecida por observadores estrangeiros).

FALACIOSO

O embaixador recorre a um sofisma ao abordar o tripé da sustentabilidade (social, econômico e ambiental). A componente ambiental é destacada porque em geral é a que falha em projetos econômicos.

É importante lembrar que os exportadores brasileiros são certificados e seu trabalho é monitorado pelos próprios importadores, por isso não é correto associá-los, com base em dados não comprovados, ao desmatamento.

FALSO

A afirmação não procede. Pelo contrário, a grande maioria dos produtores de commodities agrícolas não possui nenhum tipo de certificação para comprovar a conformidade ambiental e o estado da vegetação nativa no imóvel rural onde são produzidas. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) seria um dos instrumentos para facilitar tal comprovação, mas sua implementação tem sido protelada e parte dos dados não são públicos, o que dificulta seu uso pela sociedade e pelo mercado.

Segundo a Pesquisa Pecuária Municipal, do IBGE, nos estados que compõem a Amazônia Legal, onde está inserido o bioma e a floresta amazônica, encontra-se mais de 40% do rebanho bovino brasileiro. São cerca de 86,6 milhões de cabeças de gado em pastagens formadas após o desmatamento da vegetação nativa. E não há nenhum sistema de rastreabilidade em escala que possa atestar que o gado foi criado em imóveis em que não houve desmatamento.

Para o controle da madeira há um sistema gerido pelo Ibama, o Sistema Nacional de Controle de Produtos Florestais (Sinaflor), que não é eficiente para evitar fraudes como o acobertamento de madeira extraída ilegalmente em terras indígenas e unidades de conservação. Recentemente, foram noticiadas diversas irregularidades na exportação de madeira para Europa e Estados Unidos, cujas denúncias envolvem autoridades do órgão ambiental federal (Ibama).

Infelizmente, há um grande interesse dos concorrentes do agronegócio brasileiro em divulgar uma imagem negativa da produção nacional. A desinformação é explorada pelos “soberanistas alimentares”, que querem vender no mercado externo, mas não querem submeter-se à concorrência de produtos de igual ou superior qualidade e sustentabilidade, em detrimento dos cidadãos.

FALACIOSO

Os países que mais pressionam pelo controle do desmatamento no Brasil são os europeus, que compram nossos produtos agrícolas, e não nossos concorrentes diretos, como EUA (aliado ideológico do governo atual), Austrália e Argentina. Empresas desses países que usam commodities manchadas pela ilegalidade perdem consumidores e valor de mercado. Um estudo publicado no periódico Science no dia 16 de julho mostrou que 17% da carne e 20% da soja exportadas para a Europa pelo Brasil contêm desmatamento em sua cadeia. Pela lógica da concorrência, países europeus que são fortes produtores agropecuários, como França e Irlanda, deveriam apoiar o desmatamento no Brasil, pois isso resultaria em vantagens de mercado para eles –, mas não o fazem.

A alegação de interesses comerciais disfarçados é antiga e ressurge sempre que o Brasil é criticado por não cuidar de suas florestas. Em 1988, por exemplo, quando houve outro escândalo internacional envolvendo queimadas, esse argumento foi usado por defensores da grilagem e do desmatamento. Então, como agora, nenhuma evidência foi apresentada, porque nenhuma existia.