1 – “Integrar para não entregar”
Inventados durante a ditadura para estimular a ocupação da Amazônia, os lemas nacionalistas “A Amazônia é nossa” e “Integrar para não entregar” serviram para justificar um modelo de desenvolvimento que resultou no primeiro grande surto de destruição do bioma. Estradas cortaram a Amazônia de norte a sul (BR-163) e de leste a oeste (BR-230). O governo criou projetos de colonização e abriu linhas de crédito especiais para que fazendeiros do Centro-Sul derrubassem a floresta e estabelecessem projetos agropecuários em grandes áreas. O objetivo era proteger o suposto “vazio demográfico”, enquanto indígenas eram expulsos de suas terras.
O general Golbery do Couto e Silva, um dos responsáveis pelo golpe de 1964, escreveu em sua “Geopolítica do Brasil” que a Amazônia era um “deserto verde” e que a função do governo era “incorporá-la mesmo à nação”. Os militares se aproveitaram de fake news aventadas à época, como um projeto maluco do Instituto Hudson, nos EUA, de criar “grandes lagos” barrando o rio Amazonas, e de um instituto internacional proposto na Unesco para desenvolver a “Hileia amazônica” (termo usado no século 19 para designar a região). Obras adotadas em escolas militares, como “A Amazônia e a cobiça internacional” (1960), de Arthur Ferreira Reis, e “A Geopolítica da Pan-Amazônia” (1980), do general Carlos Alberto de Meira Mattos, defendem a ocupação da Amazônia como objetivo estratégico.
Em propagandas que apresentavam a região como um “pote de ouro” à espera de interessados, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), criada em 1966, subsidiava generosamente a eliminação da floresta. A área desmatada do bioma chegou a 14 milhões de hectares em 1978.
O projeto dos militares não mudou com o fim da ditadura. Em 1985, no governo Sarney, foi criado o programa Calha Norte, que tinha entre seus objetivos abrir estradas e estimular fazendas e mineração na fronteira para proteger o Brasil de uma invasão do perigoso… Suriname.
2 – “Fazendas aqui, florestas lá”
Em 2010, no auge da discussão sobre a mudança do Código Florestal no Congresso, a bancada ruralista apresentou um relatório americano intitulado “Farms Here, Forests There” (“Fazendas Aqui, Florestas Lá) como suposta prova de um lobby estrangeiro para minar o agronegócio brasileiro em favor do americano. O método seria aprovar leis ambientais rigorosas no Brasil para deixar o país com florestas e manter a soja americana sem concorrência. O “guru” ambiental de Bolsonaro, Evaristo de Miranda, da Embrapa, afirmou num vídeo muito compartilhado que o documento sugere financiar ONGs no Brasil “para impedir a expansão da agricultura brasileira”. É mentira.
O documento citado por Miranda foi feito por uma empresa de consultoria sob encomenda da Farmers Union dos EUA e pela ONG Avoided Deforestation Partners, e diz simplesmente, com base em dados frágeis, que as políticas globais de combate à mudança do clima, ao promoverem a redução do desmatamento tropical, acabariam por beneficiar o agro americano. O próprio argumento não para de pé, já que o PIB do agronegócio brasileiro subiu 75% e a produção de carne e soja na Amazônia cresceram no período em que o desmatamento na floresta caiu 80%, entre 2004 e 2012. Em nenhuma das suas páginas há qualquer coisa que chegue perto da sugestão de financiar ONGs. O documento completo pode ser lido aqui.
3 – O “corredor Triplo A”
Em novembro de 2018, o presidente-eleito Jair Bolsonaro ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris com base em uma mentira, afirmando: “está em jogo o Triplo A neste acordo. O que é o Triplo A? É uma grande faixa que pega o Andes, a Amazônia e o Atlântico, de 136 milhões de hectares, que poderá fazer com que percamos a nossa soberania nessa área”, disse ele à época. Mas não há nada no Acordo de Paris sobre esse assunto. Para o antropólogo colombiano Martin von Hildebrand, que idealizou o projeto do Corredor Triplo A, tratava-se apenas de teoria da conspiração. A proposta do Triplo A nada mais era do que um programa transfronteiriço de conservação, pelo qual áreas protegidas nos países sul-americanos seriam conectadas – 80% dessa conexão já existe. “Meteram tudo junto nessa fake news. Eu acho que ele [Bolsonaro] já sabe que isso não tem nada a ver com o Acordo de Paris, mas me parece que está gostando do discurso”, disse Von Hildebrand ao OC na época.
4 – ONGs são “agentes estrangeiros”
É clássica na caserna e em seu entorno a ladainha de que organizações ambientalistas são agentes de interesses estrangeiros que querem prejudicar o Brasil. Segundo o ex-deputado comunista Aldo Rebelo, o movimento ambientalista é um braço do imperialismo dos países ricos. Segundo o ex-chanceler Ernesto Araújo, as ONGs representam o “climatismo”, uma conspiração “da esquerda globalista” (um dos dois obrigatoriamente está mentindo).
Ao atacar ONGs ambientalistas e enfatizar a suposta ameaça de “interesses externos”, os militares que comandam o país desde 2019 repetem argumentos do livro “Máfia Verde – O Ambientalismo a Serviço do Governo Mundial”, de Lorenzo Carrasco, Silvia Palacius e Geraldo Luís Lino. De acordo com a teoria, países “soberanos” como o Brasil, “dotados de importantes recursos naturais”, seriam alvo de uma “complexa rede de poderosos interesses supranacionais, que criaram, financiam e manipulam o movimento ambientalista-indigenista internacional como arma política para dividir e obstaculizar o desenvolvimento” e para “exercer controle sobre o uso de tais recursos”. O mexicano Carrasco e o brasileiro Lino (também autor do livro A fraude do aquecimento global) são coordenadores do Movimento de Solidariedade Iberoamericano (MSIa), um autoproclamado think tank de ultradireita que faz a cabeça de militares como o general Eduardo Villas Bôas. A tese da “máfia verde” tem origens profundas no meio militar: ainda no final dos anos 1980, um relatório da Escola Superior de Guerra apontava “o ativismo preservacionista” e “o governo próprio em áreas indígenas” como principais “óbices à consolidação do poder nacional”. Era uma reação a campanhas iniciadas naquela década por ativistas americanos pressionando bancos multilaterais para não conceder empréstimos a obras ambientalmente destrutivas no Brasil, como a BR-364, em Rondônia. Até hoje não se viu o Greenpeace abrir uma empresa de mineração ou de extração de madeira na Amazônia – ou em qualquer outro lugar.
5 – O interesse “não é na porra da árvore”
Acuado pela crise internacional provocada pelo aumento de queimadas e desmatamento em seu primeiro ano de governo, o presidente Bolsonaro afirmou no fim de 2019 que “o interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”. Ele falou isso diante de uma plateia de garimpeiros, em evento no Palácio do Planalto.
O discurso dos interesses estrangeiros nos minérios da Amazônia é um velho espantalho criado pelos militares e em mais de uma ocasião foi usado, como vem sendo no regime Bolsonaro, para atacar a proteção às terras indígenas. O governo, porém, nunca deixou de conceder licenças a empresas estrangeiras para explorar minérios – e todas as outras coisas – na região. Em 1967, enquanto bradava que a Amazônia era nossa, a ditadura vendeu 3,6 milhões de hectares de mata entre o Pará e o Amapá ao bilionário americano Daniel Ludwig. Nos anos 1970, a Volkswagen foi agraciada com 140 mil hectares para criar gado. Diversas mineradoras estrangeiras operam sem ser incomodadas pelo governo na Amazônia, como a norueguesa Hydro (bauxita), a australiana Rio Tinto (bauxita) e a britânica Serabi Gold (ouro). As canadenses Belo Sun e Potássio do Brasil aguardam licenças para extrair ouro no Pará e potássio no Amazonas. Nenhuma foi acusada por generais de violar a soberania nacional.
Apesar do discurso oficial contra estrangeiros malvados, mais de 20 mil garimpeiros continuam atuando livremente na Terra Indígena Yanomami, com a conivência das Forças Armadas. Segundo o Instituto Escolhas, há indício de ilegalidade em 47% do ouro extraído no Brasil desde 2015. Isso sim, uma violação da soberania (e do fisco).
6 – “Nações indígenas independentes”
Indígenas brasileiros nunca reivindicaram a independência de qualquer território na Amazônia. Ao contrário, a presença de indígenas auto-identificados como brasileiros no extremo norte foi o que garantiu a incorporação de parte de Roraima ao território nacional, em disputa com a Inglaterra (Joaquim Nabuco os chamava de “muralhas dos sertões”). Mas a teoria de que haveria um movimento de criação de nações indígenas independentes ganhou força na Constituinte de 1986 e 1987, quando se discutiu um capítulo de direitos indígenas. Em agosto de 87, o jornal O Estado de S.Paulo publicou uma semana de capas com notícias falsas sobre uma conspirata europeia com a Igreja Católica para separar o território yanomami do Brasil. Segundo o Estadão, os índios eram “o caminho para os minérios”. As supostas denúncias do jornal deram origem a uma CPI, cujo relatório jamais foi publicado, na qual se demonstrou que documentos publicados pelo jornal haviam sido forjados. O desmonte da farsa não impediu que o Exército seguisse defendendo a demarcação da terra yanomami em “ilhas” e não como território contínuo durante o governo Sarney. A demarcação só sairia em 1992, contínua graças a uma decisão judicial, e assinada, veja só, por um militar: o coronel e então ministro da Justiça Jarbas Passarinho.
Outras lendas sobre o assunto afloram de tempos em tempos nos grupos de WhatsApp, como a de que há territórios indígenas na Amazônia onde só se fala inglês. O Exército age com notáveis padrões duplos nessa questão, aparentemente não se incomodando com missionários evangélicos americanos invadindo áreas indígenas para converter seus habitantes. Um desses grupos estrangeiros é a antiga Missão Novas Tribos, na qual trabalha Edward Luz, pai do antropólogo bolsonarista homônimo. A Funai no governo atual chegou a nomear um missionário evangélico para chefiar o setor que cuida de indígenas isolados e de recente contato.
7 – Guerra pela água
No Powerpoint apresentado em novembro de 2020 contendo os planos do Conselho Nacional da Amazônia para a floresta, o general-vice-presidente Hamilton Mourão afirma que existe uma “crise global da água” e que as “potências hegemônicas” dependem de recursos naturais como a água doce para manter seu poder. A Amazônia, como detentora da maior reserva de água doce disponível no mundo, estaria no centro dessa disputa – e isso justificaria a presença das Forças Armadas para defender o território dos saqueadores internacionais de água (como essa pilhagem seria feita não é especificado).
Trata-se aqui de uma simples repaginação do velho argumento da cobiça internacional e da fronteira de recursos. Os estrangeiros, principalmente os chineses, já levam embora a água do Brasil hoje, na forma de carne e soja exportadas. O governo Bolsonaro, formado por militares, apoia um projeto de lei que permite a venda de terras (portanto, de água) a estrangeiros.
8 – O falso Atlas americano
Desde os anos 2000 circula na internet uma montagem de um suposto livro escolar que seria adotado em escolas nos EUA sobre um “plano para transformar a Amazônia em um reserva internacional”. O livro citado na mensagem, “An Introduction to Geography”, não existe nas bibliotecas americanas. No entanto, a mensagem chegou a ser reproduzida em um clipping distribuído pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 2001, o que levou a Embaixada do Brasil nos EUA a apontar a fraude.
Em entrevista ao G1, em 2010, o responsável pela “checagem” à época, o diplomata Paulo Roberto de Almeida, que então trabalhava como ministro conselheiro na Embaixada de Washington, atribuiu a origem da fake news a grupos de extrema direita militar no Brasil, “interessados em preservar a soberania brasileira sobre a Amazônia, supostamente ameaçada por alguma invasão estrangeira”.